No dia 28 de Fevereiro de 1969 Portugal foi assolado por um forte abalo
sísmico, com epicentro ao largo de Lisboa. O sismo provocou grandes distúrbios
nos subúrbios da capital causando cerca de uma dezena de mortes. Na Nazaré, o
terramoto foi sentido de maneira intensa fazendo sair à rua a quase totalidade
da população.
Três da madrugada.
A Nazaré
acordou atordoada. Não era costume haver “audácema”
àquela hora da manhã. A razão prendia-se com o tremor de terra ocorrido ao mar
de Lisboa. A escala de Ritcher, que regista a intensidade dos sismos, apontava
para o número sete. Num máximo de dez é bastante.
As panelas dependuradas nas
paredes arrastavam-se pelo chão. A Companhia de Eletricidade só não teve
necessidade de cortar a energia elétrica porque raramente existia. Os candeeiros,
a petróleo, há já longas horas apagados para poupar a torcida, não deixavam
transparecer o sucedido. O ruído de toda a gente na rua era suficiente para
clarificar a situação. Das trevas surgiu, com clareza, a verdadeira causa de
tamanho alarido. Um sismo tinha ocorrido. Toda a gente perguntava por toda a
gente. Feito o balanço, ninguém faltava. Os ausentes, só o eram porque tinham
partido para sítios mais calmos, onde outros terramotos se sentiam diariamente:
a guerra colonial, a pesca do bacalhau, a França: Locais que nos levavam grande
parte da população ativa. Só os jovens, mulheres e os velhos tiveram o
privilégio de presenciar este “nosso” sismo. Os nazarenos tinham abandonado a
sua terra com receio de outros “sismos” que Richter nenhum jamais prevera.
Salazar, mais perto do epicentro,
escutara com dificuldade a turbulência popular. Sempre que o povo saía à rua,
qualquer sismo se adivinhava. A cadeira que derrubou o estadista, tinha também
provocado um terramoto na sociedade portuguesa. A vereação nazarena já se
habituara a estes safanões, de tal modo que não necessitou de se manifestar no
exterior. Ficou acantonada no seu “refúgio”.
(Na época, a câmara nazarena era
gerida por uma comissão administrativa presidida por Guilherme Ramos,
acompanhado por outros dois vogais, Abel Tormenta dos Santos e Manuel Pacheco
Dias.)
A proibição de ajuntamento, mais do que duas
pessoas, foi temporariamente levantada. Ainda assim, houve lugar a cuidados
reforçados. Qualquer descuido podia exponenciar a intensidade sismológica. Ninguém
gosta de estar no centro das ondas sísmicas.
Na rua
O povo saiu à rua. Não perdia
esta oportunidade de se juntar e contornar a interdição. Qualquer pretexto
servia. A causa era o sismo. Bem palpável. As novas palavras de ordem eram “Fujam
para a praia” e “Ponham-se debaixo da porta”. “Lembro-me de fugir para a praia
a pedido da minha mãe”, recordava Joaquim António Rocha. Lá, receava-se que o
terramoto se transformasse em maremoto. “Então fugimos para a Pederneira”, rematava.
O areal servia sempre de elo de ligação das gentes que viviam as mesmas
agruras. Estava-se em porto seguro. Habituados aos males terrestres, o mar é
sempre um conforto amigo. “Acordei de um sonho”, sustentava António Manuel
Grilo que se lembra de ter estado a estudar até tarde para o ponto de Ciências.
A juventude não costuma perder tempo com subtilezas, nem com estas partidas da
natureza. Acordar com um sismo de dez segundos, era mera perda de tempo. Houve quem
ainda abrisse os olhos, muitos continuaram com eles fechados perscrutando um
ligeiro momentâneo e passageiro mal-estar. O sonho e o pesadelo eram de difícil
separação.
“Até o sismo servia para dividir”,
sustentava Carlos Silva, aludindo aos trajes de dormir, camisas de quem dormia
noites inteiras, sem necessidade de “ir ao paredão esperar os barcos que foram pró
mar”.
No mar
“No mar, todas as noites sentimos
terramotos” argumentava José Joaquim Delgado, velho pescador. No mar os
terramotos viram maremotos, elucidamos. Um luxo para quem passa a vida ao mar. “Sempre
que os anzóis se espetam nos dedos é porque o barco se mexe. Se é maremoto ou
não pouco importa”, arrematava aquele ancião.
Os pescadores habituaram-se a
grandes turbulências. As pequenas passam-lhes perfeitamente ao lado. “Os pescadores
no mar têm de comer com o prato bem seguro com uma das mãos, se não deixa-se cair
a comida, hábito que se mantém em casa”, ripostava João Caneco.
“Só soubemos do sismo na tarde
seguinte” recorda José Bem, ancorado em Las Palmas. Os telegramas das famílias tranquilizaram,
também, aqueles que nem família tinham. “No mato, os sismos são as bazucas dos
turras”, sustentava Manuel Caiano usando a linguagem aprendida para a ocasião.
Não abdica da terminologia colonialista, embora não lhe confira a carga
idiomática que o termo contém.
As casas
As precárias habitações
mantiveram-se intactas. O teto não caiu em cima de cabeça alguma. A natureza
tem destas coisas. Podia aproveitar a ocasião para fazer justiça. A verdade é
que qualquer sopro podia fazer ruir grande parte dos casebres nazarenos. A irreverência
também aqui se fez sentir. Não houve caos: Apenas ajuntamento.
Numa dessas casas, velava-se um
ente querido. A noite foi duplamente escura para a família enlutada que
apontava para questões sobrenaturais, a razão de tamanho abanão que a urna
sofreu. Durante os dez segundos a urna ergueu-se ameaçando tombar, sem que “nada”
o fizesse prever. A angústia apoderou-se dos presentes no velório e só foi
desfeita pela presença dos populares nas ruas.
Dia seguinte
No dia seguinte, Marcelo Caetano,
de sua graça, ressalvava o bom comportamento do povo português face à
catástrofe. Salazar, antigo presidente do conselho, embora já não sendo coisa
alguma em termos governamentais, continuava a receber os ministros, que já não
eram seus. Os pescadores nazarenos lutavam contra a lei que os obrigava a andar
calçado, calçado que, apesar de escasso, em muitas ocasiões era desnecessário. Deus
dá o calçado conforme os pés. Andar na arte xávega com os tamancos a reboque
não lembrava a ninguém. Os outros, emigrantes por convicção, bacalhoeiros por
condição e militares por obrigação acabaram por saber que a terra nazarena
abanou mas não caiu.
Esta reportagem foi editada a 24
de fevereiro de 1999 no jornal A Semana Nazarena. Os nomes nela referidos são
verdadeiros e ao manterem-se não são mais do que uma homenagem a essas ilustres
personagens nazarenas.
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