terça-feira, junho 12, 2012

Ser velho é estar só no meio da multidão

 
A velhice não é por todos vivida da mesma forma; há formas diferentes de encarar este espaço: temporal. Alguns idosos refugiam-se em passatempos de acordo com as suas potencialidades intelectuais; outros limitam-se a deixar correr o tempo, entregam o seu tempo ao tempo e outros ainda, procuram ociosidades para matar o ócio.

“O que me lixa é que eu tenho setenta anos e estou todo roto”, lamenta-se José Maria Codinha, entrecortando o olhar na direção do amigo ocasional. “O Zé António tem oitenta e seis e está ali para as curvas”, completa a lamúria. “Isto é que me lixa (por conveniência literária o termo está alterado).
O ancião dirigia-se a outro ancião denotando um certo ciúme na salutar vivência do outro. A palmeira da praça Sousa Oliveira é testemunha das discussões entre eles. A gerontocracia era dissecada naquele sombrio lugar. No assento por baixo da árvore cirandavam à medida que o sol circulava.
A verdade não estava toda ela expressa naquele sentimento (inveja). A “raiva” sentida não era apenas de natureza etária. A saúde, não sendo tabu, era tema de importância relativa. A primordial razão prendia-se tão-somente com na solidão imposta a José Maria Codinha. Estava encontrado o pomo da discórdia entre ambos – a solidão.
José António Murraças vivia em casa da filha mais velha. Os mimos que qualquer rebento recebe também ele os recebia. Rivalizava com o neto até nos amuos. As refeições servidas a tempo e horas na hora de cada repasto eram um privilégio só ao alcance de poucos. “É a paga de ter tratado b em os meus filhos”, defendia Murraças com ar superior.


Isolamento

José Maria Codinha vive literalmente sozinho. A família, a que restava, ignora a sua existência. A herança dos parcos bens que possuía dividiu pelas duas noras, colocando-o contras as duas. Ao presente momento nem uma nem outra dele se dão conta. Sente-se só entre a multidão. É triste não ter nada para dividir e ter de dividir o que nada tem. Não foi por falta de carinho que os filhos o ignoram, foi por falta de outras faltas. Para sobreviver vai dependendo da boa vontade dos amigos. Amigos são todos aqueles que o ajudam a manter acesa a chama; tem muitos amigos apesar de tudo. A solidariedade ultrapassa a fronteira familiar. “Quando eu morrer vão todos gritar pelo seu pai querido”, ironiza. Em boa verdade, José Maria já conhece a hipocrisia quanto baste para adivinhar tamanha ironia.
Entre os dois Josés, está Mário Silva a quem a vida ajudou a silenciar. Nada diz este idoso, que aparenta mais idade que a que deve ter. Nada fala por não querer falar. Um pacto com a vida terá feito. A velocidade com que movimenta os olhos parece querer recordar num ápice a longa vida. Mantém aflitiva indiferença à discussão entre os amigos. Uma sombra de tristeza permanece no ar, ou de saudade quiçá. O horizonte serve-lhe de confidente; nele o olhar se fixa. De quão em vez um sorriso melancólico é esboçado, mas o silêncio nunca é cortado. O silêncio é o seu refúgio. Dele não fala e dos outros também não. Poucos são os dias que pode viver para poder desperdiçar energias com questões de somenos importância.

A testemunha

O sol anima aqueles três homens. A palmeira avalia o peso de cada palavra, de quem a profere. Avalia também o silêncio de quem apenas pensa. O pensamento de Mário Silva é livre. Assim ninguém contra argumenta. Do ar triste que ostenta adivinha-se uma vivência pouco dada a grandes divagações. A introversão é omnipresente em Mário. Os amigos de ocasião parecem não estranhar esta silenciosa presença.
Os outros? “ Estão nas tabernas”, respondem. As tabernas sempre foram locais privilegiados para ocupação de tempos livres. O problema é que todos os tempos dos idosos são livres. As tabernas mantêm ainda viva a hospitalidade gerontocrática. A impossibilidade de poder pagar uma bebida é suprida pela “roda” que cada um, dos restantes compinchas, paga. A vida assim vivida mantém-se animada até que um fenece.
A presença do lar da Confraria da Nossa Senhora da Nazaré abre a perspetiva de refúgio a uns tantos. As cinquenta e oito camas, dispersas pelos vinte e tal quartos, são literalmente ocupados. Aqui vive-se acompanhado e vigiado. Toda a gente é igual perante todos. As diferenças esbatem-se à entrada. No exterior, essas desigualdades podem ser notórias. A irmã Lucília, diretora, faz questão de salientar que “a solidariedade é a razão de ser desta casa.” Recorda que, para além destes idosos que diariamente com ela convivem, outros vinte e oito são vigiados por duas brigadas da congregação. As suas assalariadas visitam os idosos no seu espaço natural e deles tratam consoante as carências. “Lavam, limpam a habitação e levam as refeições completas”.

Santuário

Sentado num banco em frente do coreto está Jaime Galego. Esconde por baixo de si a bengala que o ampara e o transporta. O metal reluz ao sol denunciando a sua presença envergonhada. O entremeio das refeições é ali passado. Um praieiro que siteiro na última etapa da vida. Ri-se com sarcasmo quando pensa nesse ato circunstancial. No Sítio (Hospital) nasceu e no Sítio vai morrer. O ciclo da vida a fechar-se, portanto. Os “affairs” amorosos têm-no despertado ultimamente. “É um vício que nunca se perde”, ironiza.
Galego desloca-se ao Soberco com alguma regularidade. A Nazaré ganha beleza à medida que perde em realismo. Viveu intensamente aquela terra para a agora dela se alhear.
Maria Hermínia não partilha a mesma satisfação. Hermínia não perdoa à filha mais nova ter tratado do seu ingresso no lar onde reside. “Morro com esta mágoa”, balbucia de forma percetível. “O meu genro não me queria em casa” remata em surdida com os dentes cerrados e os olhos vidrados de raiva. “Prefere lá pôr a mãe dele”, sustenta sem esconder um ligeiro ciúme. Dois corpos não podem ocupar simultaneamente o mesmo espaço, diz uma das leis da Física.

Esta reportagem foi editada a 27 de janeiro de 1999 no jornal A Semana Nazarena. Os nomes nela referida são fictícios na tentativa de manter intacta a sua integridade. A relação destes nomes com alguma realidade é puro engano e fruto da nossa imaginação. 

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