O grupo restrito dos apanhadores
de meixão está limitado aos setenta pescadores credenciados pela capitania do
porto da Nazaré. Trabalham em plena escuridão com água pelas entranhas mesmo
nas gélidas noites de inverno. No valor do pescado, muitas vezes, não traduz o
sofrimento passado. É das vivências dos “pirilampos do rio” que esta
reportagem, editada a 20 de janeiro de 1999 no jornal A Semana Nazarena,
pretende dar conta.
José desce a encosta da
Pederneira, enfrentando a imensa escuridão de lanterna na mão, capinete à
tiracolo e ânsia no olhar. O cabo de madeira do capinete vareja, balouçando ao
ritmo do aro metálico que suporta a rede mosquiteira. Digamos que o capinete é
promovido a draga por uma noite. A draga, um capinete de maior porte, usa-se
para o mar. É colocada na areia na descida da onda. O pescador de costas para o
mar, enterra-a aguardando que o meixão lá caia. “Ontem ninguém apanhou nada no
rio”, sentenciava José. Hoje tenta-se o mar. Nesta arte o perigo aumenta na
proporção da apanha. Com tanta azáfama esquece-se que atrás de uma onda outra
onda vem. Uma molha pode significar uma grama de “loira” (meixão). Com as
molhas se faz o frio com as molhas se desfaz. A draga aguarda a repetição dos
movimentos.
O frio não aquece o âmago a José.
A água gélida trespassa os ossos mal protegidos. As botas de borracha até à
virilha de nada valem perante a ação do mar. o casaco de oleado só atrapalha.
Deus dá-lhe o frio conforme a roupa.
Ontem ninguém apanhou nada e hoje
ameaça repetir-se, segreda José que pondera a desistência. As luzes dos
candeeiros, ao longo da desembocadura do rio, fazem lembrar as cidades no
dealbar da madrugada.
A retirada urge. O silêncio selou
a boca dos companheiros de infortúnio. “Ninguém apanhou nada”. A frase, de
tanta repetida, ecoa pelos vales do aluvião que circunda a foz doa Alcoa,
rompendo a calma imposta. No rio apanharam cerca de 100 gramas”. No mar nada,
repõe José.
A frieza que se sente nesta arte
costuma ser recompensada com o calor imanado pela apanha. Pescar é o sorriso do
pescador. José já sentiu inúmeras vezes esse ardor. “No Natal quando o meixão
ia a 250 euros o quilo, valia a pena apanhar frio”, sustenta sem esconder os
lábios lubrificados pela emoção. “Agora vai a 100 euros e….. não há”, remata.
A bruma, que nunca desvanece,
conhece todos os amigos pelos tiques. Na passagem vão deixando “bocas”.
“Ninguém apanhou nada”, sentencia José como se de uma novidade se tratasse.
“Mas parece que o João se safou”, assegura com ar provocatório lançando a
dúvida.
A salutar discussão torna-se vã:
nada conclui. “Esta pesca não vai em ciências” esclarece. “O peixe tanto
aparece na vazante como na enchente. Ninguém entende este peixe que tanto dá no
rio como no mar”, lamenta-se.
Fiscalização
O problema maior é a polícia
marítima. Um familiar de José já foi “caçado” pela Guarda Florestal junto à
ponte da Queimada no Valado dos Frades. “A ponte das Barcas já não pertence à
Capitania, assegura José com sapiência doutrinal.
José tem umas setenta licenças
passadas pela Capitania. Movimenta-se à vontade na época de pesca permitida que
medeia a primeira quinzena de Novembro e a primeira de Março. A cédula marítima
é condição única para pescar para sobreviver de forma legal. A mulher de José
nunca teve cédula para pescar nem licença para apanhar. Mas apanha embora José
garanta que “não existem pescadores ilegais”. “Só se for no defeso” assevera em
jeito de esclarecimento. A verdade é que o frio afugenta os curiosos. “A minha
mulher chegou a chorar com o frio”.
No regresso José é recebido pelos
faróis de automóveis cujas “chaufagens” aquecem o ar tranquilo dos seus
ocupantes. Os fiscais tentam alhear-se ao mesmo tempo que olham de soslaio para
a pesca de José. A lanterna de José denuncia a sua presença mas não elimina a
dor de nada trazer. A passada vigorosa de José aproxima-o do lar que o recebe
com o calor possível.
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