terça-feira, junho 19, 2012

Apanhar meixão é trabalhar no escuro

O grupo restrito dos apanhadores de meixão está limitado aos setenta pescadores credenciados pela capitania do porto da Nazaré. Trabalham em plena escuridão com água pelas entranhas mesmo nas gélidas noites de inverno. No valor do pescado, muitas vezes, não traduz o sofrimento passado. É das vivências dos “pirilampos do rio” que esta reportagem, editada a 20 de janeiro de 1999 no jornal A Semana Nazarena, pretende dar conta.


José desce a encosta da Pederneira, enfrentando a imensa escuridão de lanterna na mão, capinete à tiracolo e ânsia no olhar. O cabo de madeira do capinete vareja, balouçando ao ritmo do aro metálico que suporta a rede mosquiteira. Digamos que o capinete é promovido a draga por uma noite. A draga, um capinete de maior porte, usa-se para o mar. É colocada na areia na descida da onda. O pescador de costas para o mar, enterra-a aguardando que o meixão lá caia. “Ontem ninguém apanhou nada no rio”, sentenciava José. Hoje tenta-se o mar. Nesta arte o perigo aumenta na proporção da apanha. Com tanta azáfama esquece-se que atrás de uma onda outra onda vem. Uma molha pode significar uma grama de “loira” (meixão). Com as molhas se faz o frio com as molhas se desfaz. A draga aguarda a repetição dos movimentos.
O frio não aquece o âmago a José. A água gélida trespassa os ossos mal protegidos. As botas de borracha até à virilha de nada valem perante a ação do mar. o casaco de oleado só atrapalha. Deus dá-lhe o frio conforme a roupa.
Ontem ninguém apanhou nada e hoje ameaça repetir-se, segreda José que pondera a desistência. As luzes dos candeeiros, ao longo da desembocadura do rio, fazem lembrar as cidades no dealbar da madrugada.
A retirada urge. O silêncio selou a boca dos companheiros de infortúnio. “Ninguém apanhou nada”. A frase, de tanta repetida, ecoa pelos vales do aluvião que circunda a foz doa Alcoa, rompendo a calma imposta. No rio apanharam cerca de 100 gramas”. No mar nada, repõe José.
A frieza que se sente nesta arte costuma ser recompensada com o calor imanado pela apanha. Pescar é o sorriso do pescador. José já sentiu inúmeras vezes esse ardor. “No Natal quando o meixão ia a 250 euros o quilo, valia a pena apanhar frio”, sustenta sem esconder os lábios lubrificados pela emoção. “Agora vai a 100 euros e….. não há”, remata.
A bruma, que nunca desvanece, conhece todos os amigos pelos tiques. Na passagem vão deixando “bocas”. “Ninguém apanhou nada”, sentencia José como se de uma novidade se tratasse. “Mas parece que o João se safou”, assegura com ar provocatório lançando a dúvida.
A salutar discussão torna-se vã: nada conclui. “Esta pesca não vai em ciências” esclarece. “O peixe tanto aparece na vazante como na enchente. Ninguém entende este peixe que tanto dá no rio como no mar”, lamenta-se.

Fiscalização

O problema maior é a polícia marítima. Um familiar de José já foi “caçado” pela Guarda Florestal junto à ponte da Queimada no Valado dos Frades. “A ponte das Barcas já não pertence à Capitania, assegura José com sapiência doutrinal.
José tem umas setenta licenças passadas pela Capitania. Movimenta-se à vontade na época de pesca permitida que medeia a primeira quinzena de Novembro e a primeira de Março. A cédula marítima é condição única para pescar para sobreviver de forma legal. A mulher de José nunca teve cédula para pescar nem licença para apanhar. Mas apanha embora José garanta que “não existem pescadores ilegais”. “Só se for no defeso” assevera em jeito de esclarecimento. A verdade é que o frio afugenta os curiosos. “A minha mulher chegou a chorar com o frio”.
No regresso José é recebido pelos faróis de automóveis cujas “chaufagens” aquecem o ar tranquilo dos seus ocupantes. Os fiscais tentam alhear-se ao mesmo tempo que olham de soslaio para a pesca de José. A lanterna de José denuncia a sua presença mas não elimina a dor de nada trazer. A passada vigorosa de José aproxima-o do lar que o recebe com o calor possível.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Este blogue pretende ser um espaço de tertúlia nazarena que obedeça a critérios, onde deva imperar o espírito crítico aliado ao elemento criativo. Não se inscrevem neste conceito, os pretendentes a mensagens anónimas cujo pretensão é denegrir.