quarta-feira, julho 11, 2012

Cemitério: o lugar onde a vida e a morte se confundem

A incursão que fizemos ao cemitério da Pederneira foi editada a 13 de janeiro de 1999 no semanário A Semana Nazarena. Esta viagem permitiu seguir o sofrimento de alguém que, diariamente, sente em silêncio a falta do companheiro, há trinta anos perdido. O ritual, que repete, não só lhe alivia a alma como amansa a dor. Ao longo deste percurso foram ocorrendo vários acontecimentos: uns aqui retratados outros potencialmente proibidos. Todas as voagens têm ambos os lados.


Desfaz-se a aurora. A abertura do cemitério acontece pontualmente às oito horas matinais. O lugar onde a vida e a morte se confundem recebe os pesarosos. O muro branco denuncia um quadrilátero pronto a desfazer-se muito por via do crescimento. A igreja abraça-o, protegendo-o. A entrada, à ilharga, não denuncia o silêncio e a arte que este lugar contempla.
Maria da Nazaré caminha penosamente pela Pedralva acima. Arrasta há muito anos a dor sentida. As suas setentas primaveras contam-se na face. A companhia do fiel balde azul, pá e vassoura destacam-se das vestes negras.
Benze-se. Por momentos, a capa escapa-se entre os dedos, fruto da ventania. Uma viúva não pode permitir estes deslizes. A cabeça recoberta é sinónimo de sentimento, apesar da viuvez se dispersar por imensos trinta anos. A oração que entoa não se identifica. As preces soltam-se na intimidade. De repente o momento de divagação: “Este é que era um padre”, virando-se para a lápide do padre Acrísio de Almeida que leu missa nesta terra entre 1 de dezembro de 1939 e 22 de abril de 1941. O lamento foi repetido várias vezes para impor verdade ao devaneio.

Ala central

Passada larga, dirige-se pela ala central, passando as sucessivas árvores podadas que ocupam toda a via. Para trás fica a área adstrita aos jazigos. Ajeita-se para se debruçar sobre o túmulo, qual mausoléu, apronta a capa negra, limpa a imagem do companheiro e beija-a. O retrato, ainda moço, olha-a permanentemente. As trocas de ideias, parecem acontecer tal são a intimidade entre eles. A corrente transmissora acontece diariamente para alívio daquela mulher que “ganha” todas as manhãs, na companhia do seu marido. “Não é por falta de companhia que há-de ficar triste” lê-se no seu olhar vazio. A satisfação do seu comportamento é a sua própria satisfação. Após saborear as saborosas recordações levanta-se, repetindo no sentido inverso o ritual de chegada.
A campa seguinte a visitar é de acontecimento mais recente, como recente é o recinto fúnebre. Pelo meio, os encontros triviais de colegas de infortúnio. O momento serve para partilhar mágoas que a serem aferidas, mais pesa quanto melhor for contada. Entretanto um funeral entra. O silêncio que já houvera, maior razão agora toma. À frente o padre que substitui o ausente. O lamento inicial volta ater razão. “Só vem aos funerais que ele quer” completa a colega de infortúnio, referindo-se ao faltoso. A relação da paróquia com o seu padre não é pacífica.
Terminada a conversa e reconhecido o fúnebre, retomam-se as actividades momentaneamente suspensas.
Maria da Nazaré acompanha a colega ao talhão onde o filho está enterrado. O jovem de tenra idade, pedreiro por vocação e toxicodependente por devoção, ajudava a construir o muro da vida ao mesmo tempo que destruía os seus alicerces. A luta que a mãe travou contra este flagelo de nada lhe valeu. “Um dia foi apanhado com dois contos de haxixe e foi multado com vinte e tal”, conta. “ Dois contos de droga e vinte de multa” diz sem esconder a raiva sentida. A revolta contra quem a “vende e nada lhe acontece” amarga-lhe ainda mais a dor acumulada. A campa já não tem as tábuas protetoras previamente pagas. Alguém as terá retirado do sítio e as colocou noutra campa. “ O processo repete-se”, argumenta Amélia que passava no momento, acabando de alindar o túmulo de um ente querido. “Quando faleceu o meu pai paguei 5.500 escudos por elas” diz, “queria colocá-las na campa de alguém que delas necessitasse e já estavam noutra campa” completa. É um negócio este das tábuas que suportam o túmulo na sua fase inicial. “Toda a gente paga a mesma quantia pelas mesmas tábuas” refere irada Amélia. As moradas perpétuas são negócio bem rentável, concluímos.
Maria da Nazaré e a amiga dirigem-se para o funeral acabado de acontecer. A zona velha já não suporta mais defuntos. O cemitério sofreu alargamento. Como dizia Saramago “Todos os nomes”, os cemitérios começam por ser uma coisa minúscula, uma parcela de terreno na periferia, mas depois vão crescendo até se constituírem autênticas necrópoles.
As duas seculares palmeiras vigiam toda a área. Testemunham acontecimentos que qualquer humano negaria a proveniência. Olham com indiferença os montículos de areia com a inscrição “Talhão nº XX”. Altaneiras mas sóbrias, as palmeiras contrastam com a riqueza que ostenta aquele lugar.



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